Foto: Agência Brasil |
Em casa, no bairro paulistano do Morumbi, o gerente de Radioproteção, equivalente ao setor de segurança do trabalho, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), Demerval Leônidas Rodrigues, soube do acidente com o Airbus da TAM pela TV e se preocupou. Mesmo em férias, telefonou para a empresa que transporta por terra os produtos vendidos pelo Ipen e perguntou se o lote do dia, que a companhia aérea leva para outros Estados e cidades distantes, tinha embarcado por completo. A resposta: não.
O relógio marcava 19h daquele 17 de julho de 2007. O prédio de cargas da TAM já ardia em chamas. Bombeiros do posto de Congonhas tinham sido os primeiros a chegar. O alerta partira da soldado Carla dos Santos, que estava em um plano elevado na base do aeroporto e viu as chamas ao final da pista.
"Vi o avião passar. Nunca imaginei um acidente. Pensei que fosse uma bomba", recorda.
Com acesso por dentro de Congonhas, o sargento José Airton Lacerda Lima e outros 10 bombeiros do posto em Congonhas foram os primeiros a chegar ao prédio de cargas da TAM, ao lado de um posto de combustíveis. Estavam em uma viatura com mangueira com pó químico, água e espuma.
"Quando vi aquilo, pensei: é humanamente impossível ter sobreviventes. Carros ali perto, que não foram atingidos pelas chamas, pareciam de plástico, deformados pelo calor", lembra o sargento.
O Airbus invadiu 15 metros dentro do depósito de quatro pavimentos. Parou no segundo piso, e o pavimento de cima desabou sobre o avião. Há 500 metros dali, bombeiros do quartel no bairro Campo Belo, já estavam a caminho. E preparados. Seis meses antes, como se estivessem prevendo, tinham feito um exercício simulando a seguinte situação: um avião com 150 pessoas a bordo despencava sobre um prédio ao lado de um posto de combustíveis e incendiava. O cenário e uma aeronave foram construídos com apoio de uma escola de samba.
"Era um treinamento, pois poderia acontecer em São Paulo. E aconteceu igualzinho", lembra o tenente Marcos Palumbo.
Logo, chegaram 97 viaturas com 255 bombeiros (mais do que todo o efetivo de Porto Alegre) da capital paulista e cidades vizinhas. O combate ao fogo era inglório. A temperatura beirava mil graus. A água jorrava das mangueiras mas evaporava antes de atingir as labaredas "ao todo, foram gastos 800 metros cúbicos de água, equivalente ao consumo de 1,8 mil casas em um só dia. Em meio a explosões, os bombeiros tentavam salvar vítimas e arriscavam as próprias vidas.
Sobre as cabeças, desabando paredes, incandescentes pelos quase 7 mil litros de querosene da aeronave em chamas. Sob os pés, 60 mil litros de gasolina e óleo diesel, armazenados em tanques subterrâneos do posto de combustíveis contíguo ao depósito. Se uma fagulha atingisse os tanques, sabe-se lá a proporção que a tragédia poderia alcançar.
Até então, 27 imóveis nas imediações já tinham sido evacuados, e era preciso urgentemente esvaziar os tanques e colocar água dentro" o que foi feito depois.
Atraídos ao prédio por um estrondo, o soldado Gilson Tomadoce e o cabo Nilton Aparecido da Silva, que faziam policiamento no quarteirão, entraram por uma escada de emergência nos fundos. Só com a farda.
"A gente não tinha noção do que estava acontecendo. A fumaça era intensa, não se enxergava o avião, não tinha equipamento de proteção. Puxamos três pessoas para a escadaria, mas elas não resistiram", lamenta Tomadoce.
Por causa disso, a situação já era delicada. E ficaria ainda mais, quando um funcionário da TAM, avisado pelo Ipen, alertou aos bombeiros da presença de material radioativo no depósito.
"Falaram em placas de exames para raio X, podendo causar contaminação, em caso de contato direto. Aí, montamos uma operação sigilosa para localizar o material. Não falamos nada para a imprensa para não causar ainda mais pânico", recorda o coronel da reserva da PM paulista, Manoel Antônio da Silva Araújo, ex-comandante do Corpo de Bombeiros.
Uma equipe exclusiva foi organizada com roupas especiais, máscaras e luvas, para procurar o material. E precisava ser encontrado logo. Do contrário, toda a área do depósito, 10,3 mil metros quadrados, precisaria ser isolada e proibida qualquer aproximação. Os bombeiros teriam de sair. E como ficaria a busca por sobreviventes?
Preocupado com o que via na TV, às 23h30min, o gerente do Ipen foi até o local do acidente, levando duas caixas de papelão, uma azul e outra amarela, iguais a das embalagens que possivelmente deveriam ser localizadas. Enquanto corpos eram resgatados dos escombros do avião, a operação secreta varava a madrugada.
A descoberta ao raiar do sol
Ao amanhecer, os bombeiros acharam o que procuravam em silêncio. Eram cinco baldes, com capacidade equivalente a 20 litros, e duas caixas, pouco maiores do que caixas de sapato. O material estava no subsolo. Sem ter certeza do que se tratava, técnicos do Ipen com dosímetro (equipamento que mede níveis de radiação) entraram nas ruínas do depósito e encontraram os produtos Iodo 131 e Iodo 125 (em estado líquido, dentro de vidros, cuidadosamente revestidos em uma espécie de cilindros de concreto para evitar quebrar o frasco). As embalagens estavam intactas, protegidas, aleatoriamente, por um pedaço de laje que caiu do teto.
Fim do suspense. O material seria enviado para clínicas e hospitais de Barretos e Araraquara (interior paulista), Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Florianópolis e Blumenau, em Santa Catarina. Eram pequenas doses de radiofármacos, para medicina nuclear, ingeridos por pacientes em exames de imagem ou para tratamento de câncer.
"Mesmo se tudo fosse esmagado e se dispersasse não causaria danos às pessoas", afirma o gerente do Ipen.
Embora a contaminação nuclear não tenha se confirmado, o episódio elevou ao grau máximo o estresse dos bombeiros.
"Foi uma preocupação adicional no meio daquela tragédia", lembra o ex-comandante do Corpo de Bombeiros paulista.
O gigantismo do desastre não permitiu melhor sorte no resgate de vítimas. Foram 15 vidas salvas e 199 perdidas. Araújo recorda com tristeza cenas como a de 15 ambulâncias estacionadas em fila, paradas no local da tragédia, vazias, a espera de feridos.
"Eles não tinham a quem socorrer", lamenta.
O esforço da corporação foi reconhecido pelo país. Bombeiros foram homenageados na cerimônia de encerramento dos Jogos Pan-americanos do Rio, ao final daquele mês. E Araújo foi agraciado pela Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da TAM JJ3054 (Afavitam) quando do primeiro aniversário da tragédia.
As indenizações viraram um tabu
Nenhum outro assunto constrange mais os familiares das vítimas do voo JJ3054 do que as indenizações. É doloroso para a imensa maioria e, por causa disso, mantido sob sigilo. A única informação tornada pública foi o saldo de negociações coletivas, lideradas pela Câmara de Indenização do Voo 3054, instalada em São Paulo com a participação de órgãos paulistas e federais de defesa do consumidor e encerrada em 2009.
De 199 famílias vitimadas pela tragédia com o Airbus da TAM, 59 procuraram a câmara e 55 assinaram acordos. Um grupo bem maior teria negociado diretamente com a TAM, mas a companhia evita se manifestar sobre o assunto. Logo após o acidente, a empresa chegou a anunciar que dispunha de R$ 2,5 bilhões para pagamento aos parentes das vítimas e a cobertura da parte material do choque.
Um outro grupo de famílias entrou com ações judiciais no Brasil, outros nos Estados Unidos "onde fabricam peças para a Airbus", e uma terceira parcela jamais aceitou receber dinheiro.
Assim como as quantias, os parâmetros das indenizações são sigilosos. Visam a compensar danos morais por abalos emocionais e danos materiais - por conta da perda dos rendimentos da pessoa que mantinha a família. Em casos de morte de crianças e adolescentes, pais e responsáveis receberam valores equivalentes ao custos que teriam com o sustento dos seus dependentes até a independência financeira deles.
Não bastasse o trauma da perda de vidas, os familiares enfrentaram um drama adicional nos dias seguintes ao acidente: o oportunismo de aproveitadores do sofrimento alheio.
O fato de filhos, irmãos e pais terem viajado às pressas para São Paulo, alguns só com a roupa do corpo, e alojados em hotéis por conta da TAM, para ajudar na identificação e liberação dos corpos, abriu um flanco para golpistas entrarem em ação.
Sem nenhuma ligação com a tragédia e sem qualquer escrúpulo, surgiram pessoas se fazendo passar por familiares das vítimas. Se hospedaram nos mesmos hotéis, compraram roupas caras em shoppings, comeram em restaurantes finos e passearam de táxi. Tudo por conta da tragédia.
"Apareceram, também, falsos advogados e até falsos jornalistas para falar com a gente", recorda o jornalista Roberto Corrêa Gomes, assessor de imprensa da Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo TAM JJ 3054.
Uma mulher desconhecida se fez passar como suposta prima da estudante Thaís Volpi Scott, uma das passageiras.
"Solicitei à TAM o quanto gastaram em nome da minha filha, mas nunca me informaram", diz o professor Dario Scott, presidente da Afavitam.
No voo 3054 da TAM viajavam 10 pessoas ligadas ao Sindicato dos Servidores Públicos Aposentados e Pensionistas do Estado do Rio Grande do Sul (Sinapers). Chamado de tricoteiras, por protestarem tecendo mantas em locais públicos, o grupo lutava pelo pagamento de precatórios, dívidas do Estado com servidores públicos e cidadãos, e o acidente despertou a ganância de espertalhões, especialistas no assunto.
"Diziam que ninguém mais receberia os valores dos precatórios porque as tricoteiras tinham morrido. Acabaram convencendo pessoas a vender os direitos de receber os valores com 90% de deságio. Houve gente lesada por receber cheques sem fundos", lamenta Kátia Terraciano Moraes, diretora financeira do Sinapers.
Fonte: Zero Hora
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