Por:
Rizzatto Nunes *Poucas vezes vi discussões tão bizarras a respeito da possibilidade de cumprimento de uma lei, como essa em relação a Lei Estadual 13.541 que proíbe o "consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não de tabaco" (art. 2º da Lei) e que entra em vigor no próximo dia 7 de agosto no Estado de São Paulo.
Li em artigos e ouvi em debates nas rádios, pessoas dizendo que a lei é "autoritária", que tira a "liberdade das pessoas" etc. Além disso, a pergunta mais recorrente para os ouvintes e leitores é se as pessoas cumprirão a lei.
Muito bem. Vamos aos fatos e ao direito. Em primeiro lugar, o que mais interessa é saber que a Lei promulgada pelo Governador José Serra no dia 7-5-2009 é, pelo que penso, perfeitamente constitucional e, claro, legítima. Ela foi aprovada com base na competência concorrente estabelecida no art. 24 da Constituição Federal (CF).
Como se sabe, no âmbito desse tipo de competência estabelecida no texto constitucional, a União Federal pode legislar criando normas gerais, assim como o Estado-Membro e o Distrito Federal. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados-Membros detêm competência legislativa plena (parágrafo 3º do mesmo art. 24 da CF). "Quanto à matéria em si, não resta dúvida da competência do Estado-Membro porque a CF enumera produção e consumo" (inciso V do art. 24), "responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico" (inciso VIII) e "previdência social, proteção e defesa da saúde" (inciso XII).
Logo, o Estado de São Paulo pode legislar sobre consumo, dano ao meio ambiente e ao consumidor e proteção e defesa da saúde.
À essa altura, em pleno ano de 2009, a ciência já deixou mais do que comprovado os malefícios da ingestão de tabaco. Isso não se discute. Nem se discute também o mal causado aos fumantes passivos. Nenhum fumante inveterado pode discutir essa questão. Aliás, anote-se desde logo que a lei não proíbe que as pessoas fumem, mas apenas que o façam em "ambientes de uso coletivo, públicos ou privados" (art. 2º). Quem quiser, pois, continuar fumando, pode. Mas, que o faça em sua residência (se bem que lá é melhor respeitar seus familiares, muitas vezes crianças e idosos) ou em espaços ao ar livre.
A questão, portanto, envolve meio ambiente e proteção à saúde. Os locais em que as pessoas se reúnem, possam ser eles bares, restaurantes, locais de trabalho etc são, pela própria natureza meio ambiente coletivo. Ora, o ar que se respira nesses lugares não pertence a nenhum dos que ali estão. É de todos e por isso, como bem ambiental coletivo, pode ser controlado pelo Estado, em especial para garantir sua qualidade. É o que ocorre com todas as normas que controlam a poluição ambiental sem que ninguém se revolte contra elas. Jamais vi alguém, fumante ou não, reclamar de leis que pretendem controlar a poluição atmosférica ou evitar o desmatamento ou a destruição da flora.
Há opiniões contrárias à lei, sob o argumento de que a União Federal já legislou sobre o assunto. A lei federal referida é a de nº 9294 de 15-7-1996. De fato, o art. 2º dessa lei diz que "É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente".
Com base, no que acima falei, percebe-se que a Lei Federal 9294 cuidou de regrar a proibição de uso geral e penso que a Lei Estadual 13.541 não viola a Lei Federal, e, logo, está adequada aos ditames constitucionais. É que, pela interpretação que se pode dar à abrangência e incidência da norma antifumo paulista, vê-se que o legislador estadual apenas especificou a norma geral: tratou de dizer que as "áreas destinadas exclusivamente" ao uso de produtos fumígeros são os estabelecimentos exclusivos "destinados ao consumo no próprio local" e "desde que essa condição esteja anunciada, de forma clara, na respectiva entrada" (inciso V do art. 6º).
E detalhou a especificação ao explicar o que é área devidamente isolada e com arejamento conveniente", o que fez no parágrafo único do art. 6º que dispõe que "deverão ser adotadas condições de isolamento, ventilação ou exaustão do ar que impeçam a contaminação de ambientes protegidos por esta lei". Realce-se que a lei federal não faz essa especificação. Logo, o legislador estadual estava livre para fazê-lo.
Vê-se, pois, que há plena compatibilidade entre a Lei Federal e Lei Estadual. Àquela trás norma geral, como manda a CF e esta, norma específica dentro de sua esfera de competência.
Recordo, também, que as supostas separações de ambientes feitas em muitos restaurantes e bares -- segundo consta visando cumprir a lei federal --, nunca funcionou. Isto porque, com a devida licença da expressão, como a fumaça não obedece ordens ela nunca ficou parada em volta do fumante. Fumaça tem o péssimo hábito de circular no ambiente: Nesses estabelecimentos em que os fumantes ficavam próximos aos não fumantes, separados apenas por uma linha imaginária, jamais houve respeito a quem quer que seja.
Antes de prosseguir, quero consignar uma vez mais meu espanto diante da relutância de fumantes de quererem não cumprir a lei por um motivo que sempre me chamou a atenção: Não se vê nenhum fumante reclamar que não pode fumar dentro das salas de cinema. E, muitas vezes, ele fica lá dentro mais de duas horas assistindo ao filme. O mesmo acontece dentro dos aviões. Os fumantes não reclamam e também não fumam. E nesse caso, muitas vezes são longos períodos de viagem sem fumar: duas, três, cinco, dez horas ou mais. A questão, é pois, outra e não o argumento de ficar algum tempo sem fumar.
O que ainda existe é uma falta de consciência de alguns fumantes em relação ao respeito que eles deveriam ter para com aqueles que não fumam. Estes sempre foram por demais tolerantes e aceitaram a violação do ar que respiravam. Muitos não fumantes adoeceram por culpa dos fumantes e, ainda assim, estes insistem em continuar não respeitando o direito à saúde dos que não fumam. Mas, isso estava mesmo na hora de acabar. É um novo momento não só no Brasil, como em vários países desenvolvidos. O que vejo de resistência por aqui, diz respeito a esse caldo de cultura ultrapassado de se dizer e se perguntar se as pessoas irão ou não cumprir a lei. Em outros lugares, essa questão não se põe. É proibido fumar em locais públicos, por exemplo, nos Estados Unidos. Então, as pessoas simplesmente cumprem a lei e não fumam. A França, num outro exemplo, que era conhecida por seus bares enfumaçados, proibiu há algum tempo o uso em locais públicos e o que vê por lá, é que as pessoas cumprem a determinação.
Quanto à questão da limitação à liberdade individual, embora não tenha espaço para desenvolver o tema aqui apropriadamente, lembro que uma característica marcante de muitas leis é exatamente a de impedir ou limitar a liberdade individual na sua relação com a coletividade. Ninguém pode, mesmo querendo, ultrapassar sinal vermelho no trânsito, nem deixar de matricular seus filhos na escola de ensino fundamental ainda que isso seja sua vontade. Mesmo que alguém tenha vontade de sair nu às ruas, também está impedido, etecetera, isto é, um longo etecetera de situações em que a vontade individual esta podada ou limitada e, na maior parte das vezes, ninguém reclama.
Essa é a regra: O limite de ação de um indivíduo termina no respeito à liberdade de ação de outro. Por isso, evidentemente, a lei antifumo não viola liberdade de nenhum fumante, que pode, como já disse acima, continuar fumando à vontade desde que não polua o ar dos que estão à sua volta. (Também repito algo mais: A proibição de fumar não vale para as residências, mas chegará um dia em que membros da família tomarão consciência de que o outro membro está estragando o ar que se respira em casa. Em pleno século XXI é uma enorme falta de respeito poluir o ar doméstico, muitas vezes atingindo bebês e crianças indefesas).
* Rizzatto Nunes é mestre e doutor em Filosofia do Direito e livre-docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP. É desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Autor de diversos livros, lançou recentemente "Superdicas para comprar bem e defender seus direitos de consumidor" (Editora Saraiva) e o romance "O abismo" (Editora da Praça).